MARCO NEVES

Há uns tempos, rodou por aí a notícia que a Hyundai decidira criar um novo modelo de carro e lhe dera um nome capaz de chamar a atenção ao português menos interessado na indústria automóvel.

Digamos que o nome do carro era um belo e sonoro palavrão português. Nem o «K» ali no início disfarçava.

Mas donde vinha esta palavra? É um nome havaiano, sem mal aos ouvidos de quem fala outras línguas (aqui fica um artigo sobre o belo sítio).

A Hyundai lá descobriu que o nome era suficiente para que muitos portugueses não comprassem o dito carro. Vai daí, mudou o nome para Kauai, que também fica no Havai e sempre permite dizer o nome do carro novo à sogra.

Pois bem, no reino que rodeia Portugal por todos os lados menos pelo mar, o nome do dito carro continuou igual. O que não seria nada de espantar, não fosse dar-se o caso de, ali no noroeste desse reino, haver uns quantos milhões de pessoas que sabem falar uma outra língua em que o nome é, também, uma grande asneira.

Falo dos galegos, claro. A verdade é que «Kona», com mais ou menos «k», é uma asneira tão portuguesa como galega. Aliás, já antes falei por aqui dessa comunidade do palavrão entre a Galiza e Portugal

Pois, imaginem o susto e o riso dos galegos a passear pelas suas belas estradas e a ver cartazes publicitários com o dito carro:

Pois bem, hoje proponho que entre comigo num belo Kona. Parta à procura da origem desse palavrão.

Ao caminho!

Pois bem, vou eu no lugar do pendura. Não estamos numa biblioteca — enquanto seguimos pela estrada fora, procuro no meu telemóvel a origem do palavrão.

Encontrei vários dicionários e páginas sobre etimologia. Várias indicam-me que o nosso palavrão vem da palavra latina «cunnus». O significado já era o mesmo que a palavra actual, embora a força talvez não fosse precisamente a mesma. Afinal, chegou a ser usada como representação metonímica de «mulher». Nesta estrofe de Horácio aparece a palavra sem grande malícia:

nam fuit ante Helenam cunnus taeterrima belli
causa, sed ignotis perierunt mortibus illi,
quos venerem incertam rapientis more ferarum
viribus editior caedebat ut in grege taurus.

— Horácio, Sátiras, I, 3

Esta palavrinha latina deu origem ao nosso palavrão, ao «coño» castelhano (que tem um género diferente), ao «cony» catalão, ao «con» francês (um palavrão um pouco menos forte), ao «conno» italiano (que, curiosamente, parece ser uma palavra literária e arcaica)…

Isto é muito giro, mas eu quero mesmo é a origem indo-europeia da palavra. Que ligações perigosas encontro? Talvez o palavrão tenha a mesma origem que uma qualquer palavra inglesa ou alemã muito inocente…

Enquanto rodamos pelas estradas de França, já bem longe da Galiza onde esta história começou (o nosso carro imaginário é muito mais rápido que os carros normais), reparo que o Wiktionary, um dicionário criado pelos leitores com uma grande quantidade de etimologias, indica que a palavra tem uma origem obscura e que há várias teorias.

Uma delas faz-me bater com a mão no tablier. É isto mesmo!

Pelos vistos, uma das teorias afirma que «cunnus» terá origem na palavra indo-europeia «*gʷḗn» que significa «mulher». Ora, esta raiz indo-europeia deu origem à palavra proto-germânica «*kwēniz» e, depois, à palavra do inglês antigo «cwēn» e, por fim, à palavra inglesa «queen».

A rainha! O título da rainha tem a mesma origem… enfim, que o nosso palavrão.

A leitora que me acompanha pôs o prego a fundo. Chegámos ao Palácio de Buckingham e deixámos a rainha entrar. Lá seguimos, no nosso Kona, com a senhora no carro para lhe explicar este facto curioso sobre o seu título…

Ora, o Wiktionary é muito bom, mas perigoso: sei lá quem enfiou lá aquela informação… Tinha de confirmar. Procurei, procurei, enquanto percorríamos verdes estradas inglesas com a rainha sentada no banco de trás.

Percebi então que a teoria é muito frágil. Não encontro corroborações. A ideia que mais encontrei é esta: a palavra latina «cunnus» terá vindo de «*(s)keu-», que significaria algo como «cobrir» — em inglês, esta raiz deu origem, depois de muito desbaste, ao verbo «hide» («esconder»). Por que razão o cobrir indo-europeu deu origem ao «cunnus» latino e aos seus atrevidos descendentes é pergunta que ficará para outro dia.

Tive de travar o carro. Disse à simpática senhora para sair — nada de pessoal, mas um artigo destes quer-se rigoroso. Ela não se importou, saiu, e sentou-se na paragem do autocarro à espera do 708 para Buckingham Palace. Lá seguimos sozinhos no Kona imaginário.

Sozinhos e sem saber para onde ir. Parece que não há maneira de saber a origem remota do nosso palavrão. Não é nada de espantar: o mesmo acontece com todas as palavras. Muitas delas têm percursos que acompanhamos, com mais ou menos segurança, até ao nosso conhecido indo-europeu. Para trás do indo-europeu, o silêncio. Milhões de pessoas ao longo de dezenas de milhares de anos falaram sem parar e não deixaram vestígios.

Ou melhor, até deixaram: as línguas que falamos.

Desta viagem frustrada, fique-nos isto: os galegos têm vários palavrões curiosos; Horácio usou «cunnus» para representar uma mulher; a palavra «queen» tem origem na palavra indo-europeia para «mulher»… Não se perdeu tudo!

(E, já que falamos de palavrões, também não perco a oportunidade para um convite: no dia 15, segunda-feira, pelas 18h30, serei um dos felizes apresentadores do Pequeno Livro dos Grandes Insultos, de Manuel S. Fonseca, que tenho a sorte de ter como editor. Fica o convite: venha a pé, de carro, de metro ou bicicleta, mas apareça na Fnac do Chiado.)

Publicação original
Certas Palavras. Línguas, livros e outras viagens. Blogue de Marco Neves.

 

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