MARCO NEVES

As palavras aparecem-nos sem certificado de origem — não temos de lhes conhecer a história para usá-las (felizmente). Mas uma vez por outra é divertido pegar numa delas, sentá-la na cadeira, apontar um candeeiro incomodativo e interrogá-la sem perdão. Então de onde vieste tu, minha malandra? A resposta não nos leva ao sentido verdadeiro da palavra, mas mostra-nos muito sobre a nossa própria história. Pois bem, hoje olho para uma palavra que está a deixar o mundo a salivar de esperança: «vacina».
Há vacinas para muitas doenças e todas seguem um princípio fácil de compreender. As doenças infecciosas são provocadas por micróbios (vírus ou bactérias). Se inserirmos no corpo uma versão inofensiva do micróbio, o corpo aprende a combatê-lo antes de contactar com o micróbio mesmo a sério. É um pouco como a equipa de futebol que vê uma gravação de um jogo da equipa adversária: aprende-lhe as manhas antes de enfrentá-la. Hoje sabemos que o corpo produz anticorpos para aquele vírus ou bactéria — mas as vacinas foram inventadas antes de sabermos o preciso mecanismo através do qual funcionam.
As vacinas surgiram da necessidade humana de combater uma das piores doenças que já enfrentámos: a varíola. A varíola matava aproximadamente 30% dos infectados e deixava horríveis sequelas nos sobreviventes. Há muitos séculos que se percebeu que o contacto com uma pequena dose da doença poderia ajudar a combatê-la — sabe-se que se faziam inoculações de varíola na China muito antes de aparecerem as primeiras vacinas.
Ora, Edward Jenner, cientista inglês do século XVIII, lembrou-se de expor pessoas à varíola bovina, que não mata seres humanos, para perceber se ficavam imunes à mortífera varíola humana. Ficavam. As experiências de Jenner foram a base do desenvolvimento das vacinas não só para esta doença, mas para muitas outras.
O sistema foi aperfeiçoado e aplicado em todo o mundo, em conjunto com outras ferramentas, como o rastreio de contactos. Nos anos 70 do século XX, a varíola foi declarada extinta — um dos mais inatacáveis progressos que a humanidade arrancou aos séculos.
Pois bem: o nome que Jenner, o tal cientista inglês, deu à doença na sua versão bovina (e, por isso, inofensiva) foi varíola da vaca — só que em latim: Variolae vaccinae. A segunda palavra desta expressão latina acabou por dar origem às palavras para vacina na grande maioria das línguas do mundo, incluindo o português, e a partir daí a palavra lá seguiu o caminho habitual das palavras, designando hoje não só as vacinas em si, como também qualquer coisa de mau que sirva de aviso para um perigo ainda maior (até na política falamos de vacinas).
Uma palavra portuguesa que tem origem numa expressão latina inventada por um inglês do século XVIII… Eis uma bela demonstração de como as palavras gostam de passear — e ainda de como as notícias da morte do latim são um pouco exageradas.
Os seres humanos têm muitos defeitos, mas têm a grande qualidade de andarem sempre à procura de ferramentas para resolver problemas. As vacinas são um excelente exemplo: são uma ferramenta para resolver um gravíssimo problema. Ora, quando encontrámos essa ferramenta, ficámos com outro problema (bem menos sério, diga-se): que nome lhe dar? Sem uma palavra, não teríamos forma de espalhar a boa notícia. Olhámos em volta à procura de alguma coisa que nos ajudasse a resolver o problema. A pobre palavra para vaca estava ali à mão de semear e lá acabou por designar esta engenhosa e utilíssima ferramenta: a vacina. Problema resolvido. As palavras também são ferramentas — e têm, muitas delas, histórias que revelam muito sobre a história desta curiosa espécie faladora.

 

Publicação original

(Crónica no Sapo 24.)

Vota neste item: