MARIA DOVIGO
Escolhi viver em galego não só como língua familiar e social mas também como língua literária. Cedo senti o apelo da literatura portuguesa não só por necessidade de regeneração gramatical e semântica da minha língua mas também pelo alargamento de horizonte simbólico, metafórico e temático que me permitia. O meu primeiro encontro, que devo à minha professora de Língua Espanhola do então 1º de BUP, foi com o Bichos de Miguel Torga, ao que se seguiu, já por minha conta, O primo Basílio. Lembrei essa minha primeira leitura do Eça na visita à exposição sobre Eça e Os Maias que esteve patente na Fundação Gulbenkian de Lisboa há um ano, com motivo dos cento e trinta anos da publicação do romance. O reconhecimento das referências ao demónio, da representação duma realidade poliédrica, em camadas, contada com ironia ou com caricaturas, do cuidado estilo… fizeram-me perceber porque Ernesto Guerra da Cal o considerava um autor galego.
Continuei esses encontros com o teatro de Gil Vicente e os livros do Raul Brandão, com a multisecular literatura de viagens, os ensaios sobre geografia e o imaginário poético sobre o mar. Para além das fontes primeiras, preço as reflexões sobre literatura galega feitas por autores portugueses, por exemplo as leituras que fez Teixeira de Pascoaes, destacando a sua inspiração na natureza e servindo-se dela para apontar o excessivo academicismo dos poetas portugueses. Estimo a expressão de Rodrigues Lapa “o perfume da flor silvestre” para referir-se à língua da Galiza, expressão que utiliza em um artigo em que fez repertório de vozes galegas que inspiraram escritores galegos, vozes evocadoras para ouvidos portugueses. Preço também os argumentos que utilizou Teófilo Braga para incluir a poesia galega que lhe era coetânea na sua antologia sobre poesia portuguesa, brasileira e galega, O Parnaso português, referindo-se à poesia galega como a infância da portuguesa e descrevendo os traços das culturas ancestrais do território presentes em ela.
Sendo esta comunidade prática comum e secular, com mais ou menos intensidade, nas fontes da invenção e na influência mútua, duma margem e da outra do Minho, os motivos, e também a utilidade, destas relações literárias não são bem os mesmos em 1877, em 1924, em 1975 que em 2019. A tendência, quando não sacralização, no discurso e na prática linguística de naturalizar as falas espontâneas, as “flores ventureiras” que Castelão preferia por terem mais perfume do que as cultivadas, bate com a realidade de um discurso oral cada vez mais desgaleguizado. Pouco resta do exotismo primitivista que inspirou Rosália e estimou Teófilo Braga numa sociedade cada vez mais urbana e universalmente escolarizada em castelhano. Ainda assim persiste uma certa tendência à censura do estilo, aquela cousa de “sempre se disse assim” ou fórmulas semelhantes, já nem sei se por esta autocensura de que não pode haver elites galegas (como todos os colonizados, temos de ser humildes) ou porque a literatura e os leitores não estão no seu melhor no que ao cuidado do estilo diz respeito. Se a cousa era questionável há cinquenta anos, em que havia margem de falantes e de qualidade, ou genuinidade, da língua suficiente para experimentos, agora a cousa é mais arriscada, com a escolarização não só já universal, mas em que os alunos saem do sistema de ensino bem mais tarde, em que estamos continuamente imersos na outra língua, em que perdemos progressivamente os dialetos rurais e emergem dialetos urbanos, juvenis, que, ainda com certos traços galegos, são de base inequivocamente castelhana. O argumento só serve para a naturalização da deturpação da língua e ainda a sua exaltação.
O ideal linguístico rosaliano da escola dos lavradores, a defesa do “sermo humilis” como característica ética e estética de Rosália, segundo Filgueira Valverde, ainda não aguentando o confronto com a realidade linguística galega de 2019, continua a limitar a prática e a interpretação que fazemos da nossa literatura. O pensamento não é só galego. Também o tenho encontrado em textos dos anos setenta de Agostinho da Silva, que acaba por defender para a língua da Galiza um modelo escrito nitidamente diferenciado do português, com o argumento do elogio da pobreza dos falantes de galego e o seu carácter lírico, diverso do épico castelhano. Gente houve que dizia que falava galego por ser língua de pobres. “A língua tiveram por língua de escravos”, como proclamou o bardo de Bergantinhos, profundo e devoto leitor de Camões.
A questão é diferente para as mulheres. A minha mãe contava-me que quando a castigavam na escola dos inícios dos anos 40 por falar em galego com o argumento “Habla bien” ela replicava que a sua mãe não podia falar mal. A minha avó foi a última monolingue da minha família. A minha mãe não me transmitiu a língua, mas podedes crer que sim me transmitiu o desejo dela. Lembrei esta experiência pessoal lendo a reflexão da Teresa Moure no Linguística Eco- sobre a transmissão linguística entre mulheres na Galiza, os porquês da quebra e a ideia de busca de um modelo linguístico, e literário, próprio, elegante. As mulheres galegas sentimos de diferente maneira o dilema entre tradição e modernidade em que se nos tenta vender a dualidade entre a cultura galega e a espanhola. Qualquer mulher do mundo precisa das vantagens da modernidade para se emancipar num mundo patriarcal que a reduz ao género tirando-lhe individualidade. Eu quero modernidade galega, mas é verdade que esse modelo é algo que ainda temos de construir. Se me viro para uma ideia de cidade das damas, cruza-se um outro limite, o limite das classes às que não pertenço, seja a de Christine de Pizan ou de Sophia, ou da mesma Rosália, para quem as minhas devanceiras analfabetas, eram cantadeiras sem cultura literária. Estamos de maneira diferente, e por diferentes necessidades, na modernidade, e temos diferente conceito da natureza. Se alguma cousa herdei não sei se da minha mãe ou da tradição literária das poetas galegas ou de ambas é, sim, um sentido ético da história, uma leitura finalista de emancipação das condições materiais, e também a confiança na natureza e a metáfora do seu magistério, numa torrente que não separa o interior do exterior.
“As mulheres galegas sentimos de diferente maneira o dilema entre tradição e modernidade em que se nos tenta vender a dualidade entre a cultura galega e a espanhola. Qualquer mulher do mundo precisa das vantagens da modernidade para se emancipar num mundo patriarcal que a reduz ao género tirando-lhe individualidade.”
No entanto há ainda outro argumento para esta comunidade literária, a visão da língua e da genealogia cultural que Valentim Paz Andrade traça em A galecidade de Guimarães Rosa. Partindo do princípio da analogia em temas, imaginário e estilo entre a obra do escritor de Minas Gerais João Guimarães Rosa e a literatura galega, Paz Andrade descreve uma imagem da genealogia da língua e a literatura galegas impossível de alhear do percurso feito pela língua portuguesa. Por um lado, o peculiar estilo de Guimarães Rosa, inspirado nas falas populares mineiras, é testemunho de que a língua portuguesa foi difundida pelas classes iletradas e aprendida não por via literária ou letrada mas por via da palavra dita. Sendo que Minas Gerais recebeu em grande medida emigração minhota, a semelhança das falas galegas e mineiras explicam-se pela continuidade das falas nas duas margens do Minho. Por outro lado, do discurso de Paz Andrade retira-se que um contexto social semelhante, o mundo camponês neste exemplo literário, gera um imaginário semelhante em qualquer lugar do mundo. A galeguidade, a social, a linguística, a identitária, a literária, está não só estilhaçada mas também espalhada. Pode ser que a viagem por esta língua espalhada também seja um possível caminho de continuidade.
Pode-se argumentar, simplesmente, a constatação de que sempre existiu a comunidade literária para os que tinham cultura literária, nos Andrade da Baixa Idade Média ou no conde de Gondomar no tempo dos Filipes, como refere o meu caro Ernesto Vásquez Souza num recente artigo. Os que lemos em galego nalgum momento começamos também a ler em português e temos livros em português nas nossas bibliotecas. A cultura literária galega não começa com uma linha crescente de legitimação de um projeto emancipatório das classes populares iletradas, é uma continuidade e comunidade cultural secular na que esta linha se insere. Há outra uma história de fundo, invisível e inconsciente como o ar que respiramos, a da democratização do conhecimento das elites letradas ou, visto doutra perspetiva, do esbatimento definitivo das fronteiras entre o popular e o erudito. E nós, sociedade galega, a plural e complexa sociedade galega, participamos nesta história tão antiga, pelo menos, quanto a invenção da escrita.
A literatura galega não tem de perder o seu grande tema de conversa que, como bem disse Guerra da Cal, é, continua a ser, a terra
As fronteiras, como as membranas, limitam tanto quanto protegem. Não deixam de ser tempos, estes da monocultura planetária obrigatória e da desterritorialização violenta de boa parte da humanidade, para pensarmos a terra e a pertença, a cultura étnica e comunitária. A literatura galega não tem de perder o seu grande tema de conversa que, como bem disse Guerra da Cal, é, continua a ser, a terra. Nem o diálogo com os géneros da tradição oral, porque essa “sombra dos bardos”, por utilizar uma expressão que aprendi da irlandesa Eavan Boland, cria uma tensão no conjunto do sistema literário que pode ser vivificante, desde que não esqueçamos que o oral é dinâmico e o tradicional um presente contínuo, o contrário da morte do sentido e a cristalização das formas. A questão é que o isolacionismo também tem um contexto ideológico, na Galiza, em Portugal ou no Brasil, em que quando se discute sobre a expressão literária e o estilo de facto se debate sobre a nossa ideia de democracia, tradição, elites, cultura e natureza. E sobre essa soberana sublime e selvagem, vigilante como uma sombra, que é a beleza.
Algumas referências
Teófilo Braga, Parnaso Português Moderno, Lisboa, 1877.
Rosália de Castro, “Duas palavras da autora”, prólogo a Folhas Novas, Havana, 1880.
Eloísa Álvarez e Isaac Alonso Estraviz (eds.), Os intelectuais galegos e Teixeira de Pascoaes. Epistolário, Sada, 1999.
Manuel Rodrigues Lapa, “A Galiza, o galego e Portugal”, in Estudos galego-portugueses, Lisboa, 1979.
Ernesto Guerra da Cal, “Saudade na literatura galega”, em Dicionário de literatura: literatura portuguesa, literatura brasileira, literatura galega, estilística literária, dir. Jacinto do Prado Coelho, Porto, 1978.
Agostinho da Silva, “Viagem à Galiza. Galiza e Portugal. Galiza e Península Ibérica. Língua galega. A igreja galega”, in Nova águia, nº 23 (2019).
Teresa Moure, “Mulheres e futuro da língua”, in Linguistica Eco-, Através, 2019.
Ernesto Vásquez Souza, “Leitura dos livros portugueses nos séculos XVII e XVIII”, in https://aviagemdosargonautas.net/2019/11/28/a-galiza-como-tarefa-leitura-de-livros-portugueses-nos-s-xvii-xviii-ernesto-v-souza/
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