VALENTIM FAGIM

O modelo de língua propiciado polo Ilg-rag não tem como missão deter o processo de substituição linguística e evitar o “trompazo final”

Um dos males antigos que atinge a nossa língua é a crença de a sua análise estar circunscrita ao espetro filológico. Ora bem, falar é um dom universal da espécie humana e refletir sobre ela está ao alcance de todas. Neste sentido, o conhecido historiador Anselmo Carreira acertava ao indicar, neste mesmo jornal, que era um assunto “apto para todos os públicos”.

Na sua análise afirmava que o galego transitava para o “trompazo final” e para o evitar seria preciso alcançar uma situação de normalidade política, social e linguística. Havia que ter cuidado, no entanto, com a diglossia com o português e a consequente “infección de termos alleos, inasumibles para o falante natural”.

A nossa língua, é fácil de perceber, sofre dous processos recuados. Um é o da substituição linguística, a transmissão de geração para geração não funciona com eficácia. O outro é de hibridação, a variedade galega parece-se cada vez mais com o castelhano e menos com as variedades de Portugal ou do Brasil. Neste sentido, ter uma formação historiográfica é de grande ajuda porque neste caso se trata de estudar, pesquisar e analisar os acontecimentos do passado e os seus impactos e relevância para a época atual; enfim, processos.

Porém, para avaliar processos também é importante ter vontade de sair da caixa e adotar perspetivas e focos de observação diferentes dos nossos. Por outras palavras, sair da zona de conforto (nem que seja de vez em quando).

Segundo o renomado historiador, o castelhano afeta pouco as estruturas internas da nossa língua que “o falante mantén con sorprendente integridade nos campos da fonética, da sintaxe e do léxico patrimonial”. Sorprendente demais, na verdade.

Um bom recurso técnico para analisar a substituição linguística é o de input. Com este termo indicamos tudo aquilo que o falante recebe, quer oralmente, quer pola escrita. Na Idade Média, o input era essencialmente o nosso latim local que partilhamos com o Norte de Portugal, e, em menor medida, o latim clássico mais ou menos estropiado. No entanto, como todas sabemos, o castelhano começa a ocupar cada vez mais espaço na nossa perceção, no nosso dia a dia. Esta dinâmica afeta o léxico patrimonial: rodilla, adiós, gallego, aier, lunes… e também a gramática: vou a cantar, levou aos pais à festa, primeiro foi cantor e logo ator… Se não bastasse, o léxico patrimonial cada vez tem um peso menor no nosso output, naquilo que produzimos. 99,9% dos termos que entraram nas nossas vidas desde finais da Idade Média são plasmados, na Galiza, em castelhano: ordenador, bolígrafo, colgar o teléfono, bufanda, coche… Esta “infección de termos alleos, inasumibles para o falante natural” é enorme e não para de crescer. Até às aldeias mais remotas e mais afastadas do ruído urbano chega o input do castelhano.

Um dos poucos presentes que brindou a Covid-19 à observadora curiosa é evidenciar, mais uma vez, que o modelo de língua propiciado polo Ilg-rag não tem como missão deter este processo e evitar o “trompazo final”. A epidemia está a gerar um campo lexical que se integrou, sem nenhuma complicação, nas falas galegas. É o caso emblemático de desescalada cuja galeguidade, no parecer de Manuel González (RAG-Termigal) deve esperar “a ver se se consolida”, já que “os dicionarios non poden fechar os ollos ao uso”. O que é o mesmo que não dizer nada, ou dizer tudo. [Seja dito de passagem, brote epidémico já estava “consolidado”].

A única exceção a este processo aberto é representada polo reintegracionismo. As pessoas que vivemos o galego como sendo uma língua partilhada com outras sociedades temos outros input que não o castelhano, o que permite consolidar palavras e estruturas diferentes às da língua estatal e gerar dinâmicas linguísticas mais genuínas. Não só, conseguimos viver em galego numa maior percentagem da nossa quotidianidade e até atingimos umas maiores quotas de transmissão familiar. Enfim, parece uma via para explorar e tentar evitar o “trompazo final”… antes de este chegar.

Publicação original

(Nós Diario, 26 de agosto de 2020)

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