XOÁN CARLOS LAGARES

Se alguma coisa caracteriza indiscutivelmente a cultura e, em concreto, a língua galega é o seu caráter minoritário. Mas o galego não é minoritário por uma questão simplesmente numérica. É verdade que a população da Galiza é pequena, que não chega aos três milhões de habitantes, e que deles nem todos são falantes de galego, embora o continue sendo ainda a maioria. Mas outras línguas europeias têm também um número reduzido de falantes (como o dinamarquês ou o neerlandês), sobretudo se comparadas ao inglês, o espanhol, o alemão ou o francês. Acontece que sendo línguas oficiais de estados independentes, tendo também o estatuto de línguas de trabalho da Comunidade Europeia, ninguém se refere a elas dizendo que são minoritárias, diz-se simplesmente que têm poucos falantes, o que não é o mesmo. O que provoca a condição minoritária das línguas (e das culturas) é, na realidade, como afirmava o sociolinguista valenciano Lluís V. Aracil, a sua satelização a respeito de outras línguas e culturas, a sua dependência, a impossibilidade de dialogarem diretamente com a diversidade linguística do mundo sem pagarem as taxas alfandegárias impostas pela língua de que dependem. Essas dificuldades traduzem-se, por exemplo, na impossibilidade que os seus falantes têm de ler os autores clássicos da literatura universal na própria língua, ou de assistirem aos filmes feitos em outras latitudes (praticamente todos os que chegam aos cinemas) legendados no próprio idioma, ou de adaptarem os nomes estrangeiros de políticos ou artistas ao próprio sistema fonológico. Ou no fato de as línguas minoritárias adotarem os estrangeirismos e os empréstimos linguísticos, ou mesmo os neologismos, sempre a partir da língua em volta da qual gravitam. Na deriva linguística, enfim, provocada pela dependência, condicionando a maioria das mudanças (sobretudo lexicais, mas também fonéticas e gramaticais) que se produzem na língua minoritária. No nosso caso, a ponte que nos une às outras línguas, e ao mesmo tempo o obstáculo que se interpõe entre elas e nós, é o espanhol (avisei que ia falar de dilemas e paradoxos, eis o primeiro).

O processo de satelização que origina a condição minoritária da língua tem consequências também na via inversa. A mais evidente consiste em sua virtual inexistência para os falantes das outras línguas. O galego é minoritário porque os seus falantes temos que levantar a mão e reclamar atenção o tempo todo, ao ponto de parecermos às vezes estranhamente egocêntricos, para que se reconheça simplesmente a nossa existência, oculta sob a nossa condição de cidadãos espanhóis e encoberta pela ideia generalizada de que a cada Estado-nação corresponde apenas uma língua. Esse preconceito, aliás, é responsável pela caraterização que muitas pessoas com quem falo do assunto fazem do galego como mistura entre espanhol e português (e até do catalão como mistura entre espanhol e francês), pois partem de uma visão em que o mundo fica enquadrado em estados monocromáticos (assim são representados nos mapas políticos que estudamos na escola) onde a língua oficial representaria uma cor pura, sendo todas as outras realidades linguísticas simples misturas dessas cores básicas essenciais. Obviamente, o galego não é uma cor/língua pura (talvez até seja particularmente “impura”), mas tampouco o são o espanhol e o português.

Quando ainda levava pouco tempo morando no Brasil, por exemplo, causava-me alguma irritação comprovar que a minha cidade, A Corunha, era conhecida só na sua versão espanhola, La Coruña. Por esse nome, que aliás o próprio clube exibe com orgulho provinciano, é conhecido o nosso time de futebol, o “Deportivo”; assim é representado na escrita em todas as ocasiões, mesmo em traduções literárias feitas a partir do espanhol de textos escritos originariamente em galego, onde não seria preciso traduzir nada, apenas adaptar uma grafia simbolicamente importante mas pequena, o “ñ”. Na versão brasileira do romance do escritor galego Manuel Rivas, O Lápis do Carpinteiro, o protagonista é preso e quase assassinado no cárcere de “La Coruña”, apesar de o texto dizer originariamente que foi “na Coruña” onde esses fatos aconteceram. Isto das “traduções” dá lugar a fenômenos bem curiosos. O relato de Rivas A lingua das bolboretas, originariamente escrito em galego, é traduzido ao espanhol como La lengua de las mariposas, servindo de base ao roteiro do filme intitulado do mesmo modo. Quando o filme é apresentado no Brasil, a (má) tradução do espanhol, que parte do absoluto desconhecimento da origem galega (oculta assim num inextricável passado), é A língua das mariposas. Mas as mariposas por estas terras brasileiras são aqueles bichos noturnos que ficam voando ao redor das luzes e não as borboletas de que fala o conto de Rivas. Como se vê, os intrincados caminhos da tradução de uma língua a si própria são insondáveis… Mesmo Galiza é conhecida no Brasil quase exclusivamente pelo nome espanhol “Galicia”, apesar de a forma galego-portuguesa, que ainda é usada, felizmente, em Portugal, existir desde a Idade Média.

Não é um segredo, de fato é consenso na totalidade dos estudos românicos, que o galego-português se formou a partir do latim falado na província romana denominada Gallaecia, que correspondia ao que hoje é Galiza e o norte de Portugal. Daí se estendeu para o sul na luta que os reinos cristãos medievais empreenderam contra os povos muçulmanos, que ocupavam quase três quartas partes da Península Ibérica. A independência do reino de Portugal e a integração da Galiza no reino de Castela determinaram destinos históricos muito diferentes para os habitantes que viviam de um e de outro lado da fronteira constituída pelo rio Minho. O galego-português deixou de ser língua escrita na Galiza durante mais de três de séculos, do s. XVI ao XVIII, como consequência da perda de poder político das elites locais, isto é, deixou de ser utilizado na redação de documentação notarial e na literatura “culta”. A historiografia galega vem chamando este período, não sem certo dramatismo, de “Séculos Escuros”. A referência à escrita é particularmente importante porque é através dela que se constituem as línguas europeias. Manteve-se, no entanto, como língua falada pela maioria da população, embora sem qualquer reconhecimento formal ou oficial.

Afirma o historiador inglês Eric Hobsbawm que antes de se generalizar a educação primária, antes da extensão da administração pública a todo o território, é impossível falar da existência de línguas nacionais. A própria noção de língua como realidade mais ou menos homogênea e estável, que a linguística moderna vem empregando desde Saussure, está atrelada à ideia contemporânea de nação. Porque uma língua é fundamentalmente um conceito. Como tal, pode ser criada por gramáticos e linguistas, a partir de um determinado olhar sobre o fenômeno linguístico, mas sobretudo por um consenso entre os falantes, que se reconhecem como pertencentes a certa comunidade de fala e não a outras. Entre os fatores que contribuem poderosamente para a criação desse consenso não podemos deixar de considerar, é claro, as fronteiras políticas, que delimitam e dão unidade à multiplicidade das falas, que estabelecem o centro gravitacional em volta do qual as falas se organizam, erigindo os modelos que guiam a atuação dos falantes.

Mas é apenas a partir da Revolução Francesa que a língua nacional é um elemento fundamental para aceder à categoria de cidadão, pois no Antigo Regime interessava a conservação das diferenças linguísticas como índice de distinção social, sem que existisse por parte da aristocracia nenhuma vontade integradora das camadas populares. O dilema com que se depararam os membros da pequena burguesia galega que no século XIX deram início à reivindicação da língua era o seguinte: quer aderiam à cidadania espanhola nas condições em que esta era imposta (e que supunha a renúncia às próprias falas em nome da unidade da pátria), quer lutavam pela formação de uma nova cidadania na própria língua.

A defesa do galego não pode desligar-se, nesse momento histórico, de outras lutas políticas. Principalmente as que se desenvolvem na defesa do acesso à propriedade da terra ou no reconhecimento de direitos políticos dos camponeses, que constituíam a imensa maioria da população e que viviam submetidos aos “foros” e aos impostos abusivos e sob o controle político dos caciques, com a emigração em muitas ocasiões como única possibilidade de sobrevivência. O discurso do progresso ligado à unidade do Estado, que se fazia em espanhol, era desacreditado por uma realidade profundamente discriminatória que sumia Galiza no atraso econômico. Se, por um lado, os intelectuais que aderem ao programa de construção da nação espanhola veem o galego como um obstáculo à unidade e um símbolo do atraso, pelo outro, contrariamente, os que, partindo do reconhecimento e da denúncia de uma realidade que chamam “colonial”, se comprometem com um projeto político centrado na Galiza, consideram a língua própria um elemento fundamental para a construção da cidadania.

Na obra de historiadores, escritores e políticos galeguistas do final do século XIX e início do XX a reivindicação da língua faz parte de um programa mais amplo de resgate dos direitos cidadãos para a imensa maioria da população. Ao mesmo tempo, como acontece em todos os processos de construção nacional, essa minoria ilustrada que pertence à pequena burguesia liberal propõe a si mesma para liderar o movimento e a nação resultante. Como parte do processo, o discurso nacionalista constrói mitos históricos em volta de uma ideia de povo que concentraria as essências da identidade coletiva, aquele que teria mantido vivo o fogo da língua nacional, depositário mesmo na adversidade dos valores e virtudes que se reivindicam como próprios.

Dá-se então um novo paradoxo, apontado também por Hobsbawm, pois a língua nacional nunca é a língua primeira de ninguém, mas algo construído a partir da enorme diversidade e da livre multiplicidade das falas. A atividade da escrita exige a elaboração de um modelo de língua que vai identificar primeiro os falantes “cultos”, essa minoria intelectual que lidera o processo de construção nacional. A defesa dos galego-falantes realiza-se assim, paradoxalmente, erigindo novas fronteiras sociais dentro da própria língua.

Acontece que, como faltam as condições objetivas que o poderiam fazer possível, esse processo de construção da língua galega resulta complexo e dificultoso. Hoje o dilema normativo é um tema espinhoso na Galiza, e causa tantos problemas e desafetos entre os defensores da língua galega, porque se situa realmente no centro do conflito. A constante disputa entre os que consideram o galego uma forma de português e os que pretendem construir uma língua autônoma com grafia castelhana tem a ver com a nossa situação fronteiriça e com a nossa realidade estritamente “regional”. A opção normativa (ortográfica e morfológica) que se transformou em oficial na Galiza autonômica, parte da consideração do português como uma ameaça à identidade do galego que se pretende construir. E isso constitui mais um paradoxo, pois isolando o galego dos outros ramos do tronco comum galego-português acentuase, do meu ponto de vista, a sua condição de satélite do espanhol. Cortando a sua potencial projeção internacional, sem interferências, no mundo da lusofonia, o galego fica confinado no seu território. Perde-se assim uma oportunidade para tirar complexos minoritários dos falantes e convencê-los, pela via dos fatos, de que o galego pode realmente dialogar com outras realidades.

Afinal, se a noção moderna de língua, aparentemente estável e homogênea, nasceu com o Estado-nação contemporâneo, será então verdade que as línguas precisam de fronteiras políticas bem definidas, poderes executivo, legislativo  e judicial, um sistema educativo uniforme, uma mídia comprometida e um exército bem armado. E o galego que nunca contou com tudo isso, tem hoje um remedo particularmente precário de “estatus” oficial, numa realidade muito distante daquela que caracterizaria um Estado independente, embora conte com um governo e um parlamento próprios, até um Tribunal Superior de Justiça, uma televisão e uma emissora de rádio públicas (que emitem em galego) e competência de governo em matéria educativa.

Pouco tempo após a aprovação do Estatuto de Autonomia, o parlamento galego aprovou uma lei chamada “de normalização linguística”, cujo objetivo seria normalizar o uso da língua em aqueles âmbitos de que se encontrava afastada, fazer a promoção do seu uso na esfera da educação, do trabalho, da religião ou da mídia. Sem entrar em considerações sobre o grau de comprometimento dos governos galegos na aplicação efetiva dessa lei, destinada a promover uma discriminação positiva para a língua galega, pode-se afirmar, pelo menos, que nos últimos vinte anos melhorou sensivelmente a valoração que os galegos fazem do seu próprio idioma. Paradoxalmente, essa consideração positiva do galego não vai acompanhada de um maior uso, ao contrário, a cada pesquisa realizada comprovamos a progressiva perda de falantes, talvez mais intensa agora do que em qualquer outro período histórico. E não adianta falarmos da inevitabilidade do processo de uniformização causado pela pressão globalizadora, pois ninguém deixa de falar galego para falar inglês. A língua que disputa falantes e âmbitos de uso com o galego continua sendo o espanhol. Na realidade, nestes anos não mudou substancialmente o perfil sócio-econômico do galego-falante, não aconteceram mudanças significativas na sociedade galega que pudessem frear a perda de falantes assegurando, ao menos, a transmissão da língua entre gerações.

O trabalho do Governo Galego tem sido até hoje, neste sentido, paradoxalmente desestimulante. A política linguística resultante da estrutura autonômica vem sendo como um parquinho, daqueles onde se mete as crianças, em que o Estado encerrou o galego para deixá-lo ali brincando tranquilamente de gente (de língua) grande, sem incomodar os adultos, que vigiam de longe para não acontecerem desmandes. Os políticos que aplicam (ou não aplicam) as leis concentram os seus esforços em implementar medidas compensatórias que não têm como horizonte a efetiva recuperação social do galego. Nesse sentido, e na medida em que não existe uma vontade política transformadora, parece que os investimentos econômicos realizados pelo Governo Galego na promoção da cultura fazem parte de um faustoso funeral adiantado, tendo os centros de pesquisa, nessa situação, a pouco gratificante missão de realizar a necropsia (adiantada) do cadáver. De continuarem as coisas assim (a Unesco já incluiu o galego entre as línguas em perigo de extinção), o galego será apenas uma língua muito bem estudada, mas que ninguém falará na Galiza (“somente” em Portugal, no Brasil e nas ex-colônias portuguesas na África e na Ásia).

A inflexibilidade com que vive a oficialidade cultural a questão da norma parece condizer com esse estado de coisas. De um lado, a visão estreita do processo de construção nacional que alimenta o fazer de alguns intelectuais galegos, ao pretender construir uma língua particular para a Galiza (na equação, que, aliás, realizam sistematicamente os Estados, “uma língua – uma nação”), vê não apenas no espanhol, mas também no português uma ameaça. De outro lado, o processo de construção nacional inconcluso, que tem o seu limite no regime autonômico da nação espanhola, dá finalmente nisso, uma nação “regional” e uma língua “regional”. Duas ficções pouco prestigiadas que pouco têm a fazer frente a outras ficções bem mais poderosas.

Atualmente, na Galiza o domínio da norma do galego, e o uso consciente da língua, permite a uma pequena minoria desfrutar alguns privilégios no marco do poder autonômico. Para o resto da população continua saindo mais em conta o uso do espanhol. Penso que isso resume bastante bem a situação.

Temo que a minha visão da realidade atual do galego não seja muito positiva. O qual não quer dizer que seja desesperançada. Para aqueles que nos interessamos pelo galego porque nos preocupamos pelos direitos dos falantes, para os que pretendemos entender a realidade e influir nela orientando-nos por uma utopia igualitária, o desafio que se nos coloca é o de responder à seguinte pergunta: o que fazer? Como defender o galego (isto é, os seus falantes) sem reproduzir os modelos conhecidos de construção das línguas nacionais, que instauram como princípio definidor precisamente a desigualdade linguística? Não podemos mais pensar que conseguiremos acabar com os modelos de dominação que combatemos na Galiza percorrendo à revelia esses velhos caminhos. Por isso é que se faz necessário e urgente descobrir, inventar outros caminhos que não passem por aí. A minha intuição me diz que o que se impõe realmente como necessidade não é comprarmos o jogo que se nos propõe, mas destruí-lo (e sair do parquinho). No caso do galego, iniciarmos a destruição das fronteiras linguísticas que nos impuseram não me parece um mau começo.

Publicação original

Versão levemente reduzida de Dilemas e paradoxos na história recente do galego Diário Liberdade, maio de 2011

Remédios para o galego. Coordenação: Diego Bernal e Valentim Fagim. Associaçom Galega da Língua.
www.atraves-editora.com

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