MARCO NEVES

Todos sabemos que os espanhóis não são muito dados a ouvir línguas estrangeiras: não só dobram tudo o que lhes aparece à frente, como têm uma estranhíssima inclinação para ouvir muita música espanhola.

«Olhinhos azuis» na TVE?

Ora, um dos programas mais importantes da TVE é a Operação Triunfo. O programa também já passou por cá, mas não aqueceu nem arrefeceu. Em Espanha, a Operação Triunfo é um fenómeno tremendo — e, ainda por cima, serve para escolher o representante do país na Eurovisão. É fácil concluir que as músicas são, em geral, cantadas em espanhol ou, uma vez por outra, em inglês.

Pois bem — o que dirá o leitor se eu lhe disser que uma das músicas que será cantada na final da Operação Triunfo espanhola de 2018 inclui estes versos?

Meus olhos choram por ver-te meu coraçom por amar-te
meus pés por chegar a ti meus braços por abraçar-te.
Desejava de te ver, trinta dias cada mês
cada semana o seu dia e cada dia umha vez.
Tes os olhinhos azuis inda agora reparei
se reparara mais cedo nom amava a quem amei.

Isto não é uma tradução. São mesmo os versos que serão cantados por Sabela, uma das concorrentes finalistas. A canção chama-se «Tris-tras» e é do grupo Marful.

O que se passa aqui? Uma espanhola vai tentar chegar à Eurovisão a cantar em português?

As palavras «coraçom», «umha», «nom» são as pistas para deslindar o mistério. Sabela é uma concorrente galega e, numa decisão que não é nada simples em Espanha, decidiu cantar na sua língua: o galego.

A letra acima está escrita na ortografia reintegracionista, muito próxima da portuguesa. É verdade que o galego oficial usa uma ortografia mais distante da portuguesa — mas as palavras e as frases são muito nossas.

Reparemos, por exemplo, nos primeiros versos de uma das músicas já cantadas por Sabela («Benditas Feridas»; note-se — «feridas» e não «heridas»), versos estes que estão na ortografia oficial, mais distante da portuguesa (e mesmo assim tão próxima):

Pouco a pouco
Vou deixando de esperar
E secando as miñas ganas de chorar
A luz tornouse a miña escuridade

De Salvador a Sabela

Ao ouvirmos Sabela, notamos como a fonética já se afastou bastante a norte e a sul do Minho. Mas, se repararmos, vemos que ela está a usar palavras tão nossas que arrepiam. Aliás, a proximidade entre português e galego anda a confundir alguns brasileiros no Twitter…

Um amigo confidenciava-me que, para muitos galegos, ter Sabela a cantar em galego na TVE sabe tão bem como aos portugueses soube ganhar a Eurovisão com uma música em português — com a diferença de que a nenhum português lhe passaria pela cabeça que fosse um problema cantar na sua língua para todos os europeus. Em Espanha, cantar em galego para todos os espanhóis ainda é uma novidade — e está longe de ser pacífico. Há quem não perceba que as línguas podem somar-se umas às outras — que haver galegos que insistam em falar e cantar em galego não põe nada nem ninguém em perigo. Aliás, esses mesmos galegos serão os primeiros a falar em espanhol quando é preciso (e, às vezes, quando não é preciso).

Bem, mas porque trago o assunto a esta crónica?

Na verdade, poucos de nós sabemos como a participação de Salvador Sobral na Eurovisão foi muito bem-recebida na Galiza. Muitos galegos sentiram as palavras daquela canção como suas e comemoraram sem medo a vitória de Sobral.

Não digo que façamos a mesma coisa — mas, já agora, reparemos em Sabela, uma cantora que anda a usar a língua das Cantigas de Amigo para ganhar um concurso espanhol.

À distância segura da nossa fronteira antiga, não nos faz mal desejar sorte a quem leva uma língua tão nossa aos ouvidos dos espanhóis, que assim ficam a saber o que são «olhinhos azuis» — se isto não é a nossa língua, é o diabo por ela.

Que ganhe a melhor — e que a melhor seja Sabela.

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