PAULO GAMALHO

Aproveitando que estamos no Natal, permiti-me fazer um exercício de linguística-ficção. Estou a visualizar uma aula de Língua Galega em sexto de Primário, que inclui uma nova unidade didática chamada “Do galego ao portugués en 3 horas”, produto do novo Decreto de “Achegamento ao portugués en Primaria”, desenvolvido a partir da Lei Valentim Paz-Andrade para o aproveitamento da língua portuguesa e vínculos com a Lusofonia.

Estou a imaginar uma turma de pré-adolescentes de 11 e 12 anos. Fala um professor de Língua Galega com aspeto de levar anos, talvez décadas, sem dormir bem:

— Quando escreveis um texto em galego, sem faltas e respeitando as normas que já conheceis, sabeis qual é a percentagem de palavras escritas em galego que também estão num dicionário de português?

Após uns segundos de silêncio, uma aluna ousa levantar a mão.

— Profe, que é uma percentagem?

O nosso professor esboça uma carantonha contrariada, mas consegue responder com a paciência infinita de quem está afeito a todo o tipo de perguntas:

— Xiana, de cada 100 palavras galegas dum texto, estou a perguntar quantas são bom português. Como nem vós nem quase nenhum galego o sabe, vou dar-vos a resposta: 68. Os 68 por cento de um texto em galego é também português.

— Profe -retrunca a mesma aluna-, quer dizer que sempre que escrevo 100 palavras, 68 são portuguesas?

— Bom, é uma tendência, nem sempre é assim. É só uma tendência…, um trending, percebeis?

O nosso docente, cheio de energia, diz para si próprio “bem, bem, bem, começamos logo!”; apanha o giz e começa a escrever no quadro-preto enquanto explica com voz resoluta:

— Os 68% é um bom começo. Já sabemos bastante português, nomeadamente se considerarmos que a sintaxe galega é praticamente idêntica à portuguesa. A seguir, vou-vos dar algumas regras de escrita mui simples para assim atingirmos os 80%. Este é mesmo o objetivo das três horas que temos por diante: chegarmos aos 80% de escrita em português. A primeira regra com mais cobertura que quero que aprendais é a seguinte: trocamos o “-n” final por um “m” quando a palavra galega termina em “-an”, “-en”, “-in”, “-on” “-un”, como em “saben”, “con”, “en”, etc. Só com isso subimos a percentagem 4,6%. Segunda regra: trocamos as terminações “-ción/cións” e “-ón/-óns” por “-ção/-ções” e “ão/-ões”, respetivamente. Com isso, ganhamos mais 2,4%. Já estamos nos 6% de ganho e levamos 5 minutos de aula! Terceira regra: agora trocamos “ñ” e “ll” por “nh” e “lh”, respetivamente. Com isso, ganhamos mais 1%.

O nosso prezado professor continua durante mais uma hora ensinando outras regras: troca de “á” por “à”, “-ía” por “-ia”, “-ble” por “-vel”, “-aba” por “-ava” e remata com duas regras que, segundo ele, têm bastantes exceções mas que, mesmo assim, continuam a fazer crescer a percentagem: regra “z” por “ç” e regra “x” por “j” se a vogal que segue é “a/o/u” e por “g” se a vogal a seguir é “e/i”.

— Com estas 10 regras, qualquer pessoa que saiba galego consegue atingir 80% de bom português, partindo de 68% inicial.

— Profe! Volta a interpelar Xiana, e logo, o meu nome como se escreve? Com “j”? E como se pronuncia? Com gheada?

O mestre acarinha o queixo, olha durante um anaco em silêncio para a aluna e, finalmente, responde:

— O teu nome escreve-se como o escreveram os teus pais no Registo ou como queiras ti escrevê-lo quando tiveres 18 anos. Mas sempre se pronunciará “Shiana”, mesmo em Lisboa ou no Rio de Janeiro. Os nomes próprios não mudam, exceto se a pessoa referida quer que mude.

Já finalmente, na última hora da unidade didática, o mestre dedica-se a listar as palavras mais frequentes que não se adequam às últimas regras e que são portanto exceções às mesmas: “baijo”, “mágimo”, “prógimo”, “progeto”, “égito”, “caija”, “çona”, “realiçar”, “praço”, …, deixando fora da lista os nomes próprios.

— Profe!! Berra Xiana com gesto contrariado. Temos que aprender de cor essas listas de palavras? É mui aborrecido!!

Bom, podemos deixá-las para a seguinte unidade didática que tereis no próximo curso, em primeiro do ESO, quando fordes ao Instituto. De facto, o objetivo dos 80% já o conseguimos sem necessidade de decorar essas listas de palavras. Mas, se vos sou sincero, em vez de chapar listas, o melhor método para atingir 99% é começar a ler em português.

— E como se consegue 100%? -pergunta Xiana.

— Falo apenas dos 99% -retruca o mestre. Porque nem os textos de Saramago, o Nobel português, conseguem chegar aos 100%.

— E se eu chego aos 100% poderei ganhar o Nobel? Volta a perguntar Xiana.

Como já estão perto do fim da aula e a conversa semelha escapar-se do rego académico, o professor procura uma frase lapidária para terminar a aula:

— Uma boa escritora sempre usa palavras que não estão no dicionário.

O professor começa a recolher as suas cousas enquanto se despede:
Aqui terminamos a primeira unidade didática de Português de 3 horas dentro da matéria de Língua Galega. Se aprenderdes as regras que vos ensinei, tereis provavelmente o equivalente a um diploma B2 de português. Espero que com as 6 horas a mais que vais ter no ESO, podereis chegar a um nível Avançado e, talvez, algum dia, conseguireis ganhar o Nobel. Abur!

P. S. 1: Os números oferecidos polo nosso professor são o resultado de um trabalho de análise computacional sobre um corpus textual galego de 61.324 palavras extraídas de artigos do já desaparecido xornal.com, e com ajuda dum léxico computacional português de 908.824 formas (dicionário de FreeLing). Os experimentos consistiram em definir e programar 10 regras de transcrição de galego para português e aplicá-las incrementalmente ao corpus galego. Finalmente, validaram-se os resultados contra o léxico computacional português, prévia filtragem automática de entidades, quantidades e datas.

P. S. 2: As estatísticas do texto foram apresentadas em forma de relato de ficção, pois é preciso fazer ainda mais experimentos em diferentes corpus e com melhores estratégias de análise para atingirmos resultados com menor margem de erro.

Publicação original:
http://pgl.gal/portugues-para-dummies-em-aulas-de-lingua-galega/, janeiro de 2015

Remédios para o galego. Coordenação: Diego Bernal e Valentim Fagim. Associaçom Galega da Língua.
www.atraves-editora.com

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