FERNANDO CORREDOIRA

«[Os Galegos] por mais anos que vivessem em Portugal, nunca aprendiam o português, provavelmente porque falavam já «uma espécie de português».

Manuel de Seabra, «Portugal?», em Portugal, Rostre d’Europa, L’Avenç, núm. 293, Julho-Agosto 2004.

Recapitulação

Desde há uns vinte e tal anos os esforços reintegracionistas têm-se aplicado em criticar as Normas Ortográficas e Morfolóxicas e em propor e difundir outras Normas Ortográficas e Morfológicas. Seria redutor afirmar que o reintegracionismo se tenha centrado apenas na questão da orthographia. A crítica foi bem mais fundamental e prende-se com a própria conceção do que é uma língua em geral e a língua galega ou portuguesa em particular. Mas a verdade é que a batalha se travou basicamente no terreno da representação gráfica da língua e no seu modelo de correção escrita.

Desde então, centos de pessoas temos feito (e estamos a fazer) um esforço valioso para aprendermos a escrever um galego-português correto. Estamos a apropriar-nos do modelo português mas estamos também criando o nosso próprio modelo e recriando a nossa tradição nacional. Este empenho é tanto mais meritório quanto é dificultado pelas instituições públicas e, sobretudo, inibido pela sociedade. Contudo, o resultado foi frutífero: pela primeira vez, tem vindo a formar-se uma porção ativa de gente que é tendencialmente competente em português-galego escrito. Este é um facto importante que está ainda em curso e a medrar.

O padrão

O padrão, qualquer padrão, não é apenas saber escrever de certa maneira. É também saber falar de certa maneira.

Ao longo de nem sei quantos séculos, o padrão ou língua-modelo dos Portugueses foi fazendo-se em boa parte desgaleguizando-se (a língua-modelo dos Galegos foi o castelhano, mesmo para alguns, a partir de dada altura, para o evitarem). O padrão português, oral e escrito, fez-se estigmatizando e suprimindo boa parte dos traços fonéticos, morfológicos e lexicais nortenhos, que são os do antigo continuum galego-português. De modo que, ainda um hipotético galego plenamente restaurado, soaria aos ouvidos portugueses como um falar incorreto e inadequado. Seria um falar que acumularia todos as características socialmente reprovadas pelo padrão português (não apenas o «lisboeta»).

Afonso Daniel Castelão conta a respeito disso uma experiência pessoal típica e reveladora no Sempre em Galiza.

O problema

A opção ILGA-RAG nem coloca o problema: o galego não é português. Ponto parágrafo. São duas línguas mui parecidas, com uma origem e um passado comuns mas que acabaram por divergir até tal ponto que já não são a mesma língua (aqui a palavra-chave é passado). De maneira que está fora de questão a necessidade de qualquer convergência de língua: nós falamos e escribimos assim e vós falades e escribides assado. Ponto final.

A opção lusista / reintegracionista diz que o galego é português, portanto quem fala galego já está a falar português, mas ocorre que o galego está hoje mui castelhanizado, é por isso que… etcétera. E diz ainda que o português é como teria sido o galego se não… etcétera.

Em consequência, o reintegracionista / lusista fai certas escolhas lexicais e gramaticais convergentes com o modelo português, que é o seu modelo de correção. Enfim e em conjunto, o reintegracionista / lusista escreve com mais ou menos competência em português-galego (ção) ou em galego-português (çom).

A opção lusista / reintegracionista coloca o problema. E coloca-o porque se identifica com o português e quer ser identificado como escrevente e como falante de (uma variedade de) português. E tenta resolvê-lo adotando a orthographia do português. Bom, não só a orthographia como também a morfologia, o léxico e a gramática, mas basicamente estamos a falar da língua sobre o papel.

Mas acontece que, por mais evidente que sobre o papel seja esta convergência, ela passará despercebida aos ouvidos do comum dos Portugueses. Poderá o tal reintegracionista escrever um português bem escorreito e bem adequado mas falará um português inadequado e incorreto. No melhor dos casos (de facto, quase sempre) passará por um Espanhol bem-intencionado a tentar falar português mais ou menos (des)ajeitadamente. Todos conhecemos a frustração de experiências semelhantes.

O que se há-de fazer, logo?

Creio que solução ao problema (para quem considerar que o que acabo de expor é um problema que deva ser resolvido) é adquirir competência no português padrão oral. Trata-se de aprender a falar português, simplesmente. Trata-se de buscar e criar as situações comunicativas que nos permitam aprender e usar (aprende-se usando) com estudada naturalidade o português padrão falado. Tal como estamos a fazer com o português escrito.

Acréscimo

«O escritor suíço – contrariamente ao alemão e ao austríaco – não escreve na língua que fala no seu dia-a-dia, que são dialetos regionais. A escrita literária é algo de artificial, ele tem face a ela uma relação mais distanciada do que um autor que fala e escreve a mesma língua. Hugo Loetscher (1929-) fala a este respeito de «bilinguismo dentro da mesma língua» […]

Gera-se uma tensão entre a linguagem falada e a escrita […] [Esta] tensão torna-se produtiva, em sentido qualitativo, quando os escritores aceitam aproximar a escrita literária da «escrita falada» não recusando as especificidades do alemão suíço […]. Épocas houve onde os chamados HELVETISMOS eram evitados, porque eram mal vistos no grande mercado alemão […]. Os escritores refugiavam-se então num alemão extremamente «puro», com medo de parecerem provincianos. Era um alemão hipercorreto, mas sem vida, um alemão que querendo ser anti-provinciano, o era em grande escala. O autor suíço tem de aceitar a sua dualidade linguística (Gonçalo Vilas-Boas, Um Olhar Sobre a Literatura Suíça, Revista da Universidade de Aveiro / Letras, nº 6-7-8, 1989-1990-1991. As ênfases são minhas).

(O autor restringe a análise aos problemas linguísticos dos escritores mas as suas observações transcendem campo estrito da língua literária.)

Creio que muitos lusistas galegos nos reconheceremos neste retrato. E creio também que nos conviria prestarmos ouvidos ao conselho final. Mas, antes de nos lançarmos a glosar as analogias entre a nossa situação e a da suíça germânica, notemos a diferença básica:

O caso da suíça germânica é o exemplo típico duma situação de diglossia ou «bilinguismo dentro da mesma língua». O que define esta situação é a distribuição funcional de duas variedades linguísticas. É uma situação estável (note-se, porém, que o autor do excerto transcrito fala em «tensão», o que envolve presença de forças antagónicas, quer dizer, movimento).

Pelo contrário, aqui está a ocorrer um processo de substituição linguística: uma língua ganha extensão e outra retrocede.

Na Suíça germânica a distribuição funcional entre o alemão-padrão e o alemão-suíço está estabelecida e é aceita pela sociedade. Aqui a proposta diglóssica lusista é não só marginal como ainda objeto de discórdia no interior do próprio movimento nacional.

De momento, quedo por cá. Talvez outros ou eu mesmo queiram continuar a refletir sobre um assunto que aqui me limitei a colocar.

Publicação original

https://pgl.gal/falar-e-escrever-ou-como-escrever-um-galego-correcto-pode-ser-falar-um-portugues-inadequado/, setembro de 2009

Remédios para o galego. Coordenação: Diego Bernal e Valentim Fagim. Associaçom Galega da Língua.
www.atraves-editora.com

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