MARCO NEVES
Hoje o meu filho mais novo faz um ano inteirinho e apetece-me escrever um pequeno artigo em sua homenagem. Ora, já falei da palavra «filho» há uns tempos. Assim, lembrei-me de ir antes procurar palavras que, na língua portuguesa, signifiquem «filho mais novo» — e ver aonde me levam.
Caçulas e benjamins
Pois bem, se pensarmos um pouco (ou se, em caso de esquecimento, consultarmos um dicionário), apanhamos logo duas palavras: «benjamim» e «caçula» (esta última muito mais usada em português do Brasil).
Antes de continuar, devo notar que a maneira mais comum de nos referirmos ao filho mais novo não é nem «caçula» nem «benjamim», mas sim, precisamente, «filho mais novo»… Uma língua pode ter palavras que expressam um determinado conceito e os falantes, teimosos, usam uma expressão um pouco maior… Não é nada de outro mundo: cada palavra tem um peso particular, uma certa maneira de se relacionar com as outras e com quem as usa — e nem sempre queremos usá-la, por este ou aquele motivo. Por exemplo, eu, se estivesse a falar em público, talvez dissesse, só para variar o vocabulário, «o benjamim lá de casa». Entre amigos, podia acontecer que me saísse «olhem aqui o caçula a rir», mesmo sendo uma palavra muito mais usada no Brasil. Mas na grande maioria das situações diria apenas, se necessário fosse, «o meu filho mais novo».
(Isto talvez seja mais uma pista para percebermos que, ao contrário da ideia corrente, a falta de uma palavra particular numa língua não tem de corresponder, necessariamente, a uma limitação dos falantes dessa língua. Através de outras palavras e desse motor de criação dum número infinito de frases que é a gramática, conseguimos lá chegar na mesma, mesmo que demore um pouco mais. Mas adiante — que hoje a viagem não passa por aí.)
Olhemos para as duas palavrinhas.
A palavra «benjamim» terá surgido como derivação do nome bíblico «Benjamim», o filho mais novo de Jacob. Nada a dizer: a Bíblia deu-nos algumas palavras — e muitos nomes.
Já «caçula» terá origem na palavra «kazuli», que tem esse preciso significado na língua quimbundo, uma língua africana da família bantu. Antes de avançarmos, noto que o quimbundo é da mesma família linguística do suaíli, de que falei há uns dias para descrever os estranhos relógios de pernas para o ar.
Esta língua deu algumas palavras ao português — principalmente ao português do Brasil, o que se compreende, tendo em conta o número de falantes de quimbundo que para lá foram levados como escravos.
Bué de palavras?
Olhando para o português de Portugal, há também algumas palavras com origem nas línguas bantu. Por exemplo, a palavra «quezília», que parece ter vindo de «kijila».
Mas talvez o mais famoso vocábulo com origem no quimbundo seja uma palavra que algumas pessoas dizem não ser uma palavra — e isto apenas por ser típica do registo mais informal.
Falo de «bué». É bem provável que tenha vindo de «mbuwe», que quer dizer «abundância» ou «fartura» (segundo a Infopédia).
É uma palavra muito informal, de facto — mas existe e é usada por muitos portugueses e já não me parece que esteja reservada apenas às crianças e adolescentes. Oiço-a da boca de adultos de 40 anos, quando estão a falar à vontade (alguns deles talvez jurem nunca a dizer, mas nós somos todos terríveis observadores do nosso próprio uso da língua). Não nos preocupemos: todas as gerações usam palavras novas: algumas desaparecem sem rasto; outras, como «bué», acabam por ficar, pelo menos até os falantes se fartarem. Pois a verdade é que essa palavrinha é, hoje, bem portuguesa. Já os brasileiros não costumam saber o que significa…
Uma palavra com várias décadas de uso já está nos dicionários, o que parece irritar uns quantos. Ora, note-se que uma palavra estar no dicionário não significa que tenhamos de a usar — pelo menos, não temos de a usar todos (cada falante tem o seu vocabulário) e muito menos temos de a usar em todas as situações. Muitos dos bons dicionários registam os palavrões — e isso não nos dá autorização para usá-los por dá cá aquela palha.
Há, na verdade, alguma confusão sobre a função dos dicionários. Um dicionário não serve para criar palavras — as palavras existem primeiro na boca dos falantes e só depois nas páginas do dicionário. Também não serve para autorizar o uso de determinada palavra pelos falantes. Quando falamos, não andamos a folhear esse delicioso livro para saber se podemos ou não usar uma palavra.
Então, para que servem os dicionários? Servem, principalmente, para duas coisas.
Primeiro, para registar o significado que os falantes dão às palavras. Como nenhum de nós conhece todos os vocábulos da língua, às vezes temos de ir ver o que significa uma palavra que, antes, nos era desconhecida. Para isso, os dicionários têm de ser abrangentes… Se não o fossem, não seriam úteis.
Os dicionários serão especialmente úteis para os estrangeiros que tentam aprender a língua. Ora, um aluno estrangeiro de português, se ouvir um miúdo a dizer «bué», vai querer saber o que significa a palavra — mesmo que o pai do miúdo torça o nariz.
Se o dicionário for bom, irá tentar orientar o falante sobre as situações em que a palavra é usada — mas, na verdade, só conseguimos aprender bem esse jogo através de tentativa e erro, usando a língua no dia-a-dia e ouvindo com atenção os outros.
E o segundo uso dos dicionários? Ajudam-nos a encontrar a palavra certa para aquele texto que estamos a escrever. Aliás, neste caso, o melhor dicionário é mesmo o dicionário de sinónimos…
E mochila?
O leitor talvez tenha notado o meu uso de construções um pouco dubitativas para falar da origem das palavras. Esta palavra «terá vindo», ou «é possível que tenha origem em…». Isto acontece porque, quando nos enfiamos nos meandros da história das palavras, convém ter sempre muito cuidado e poucas certezas. Há tantas armadilhas e falsas origens…
Dou um exemplo: para escrever este artigo, andei à procura de mais palavras de origem africana. Numa das listas que encontrei aparecia a palavra «mochila». Sorri: era, de facto, muito engraçado que essa palavra tivesse vindo de África. Podia até, neste texto, falar dos meus filhos de mochila às costas…
Mas parece que não é possível: o percurso que encontramos nos bons dicionários será este: a nossa «mochila» virá da «mochila» espanhola, que virá de «mochil», um mensageiro de mochila às costas, «mochil» esse que virá de «motxil», o diminutivo basco da palavra «motil», que significa «rapaz» em basco. Ah, reparemos: os bascos transformam «motil» em «motxil» e formam um diminutivo. Um «rapazinho», portanto. «Mochila» virá do «rapazinho» basco. [Juanjo, um leitor basco, avisou-me, num comentário a este artigo, que também esta história tem muito que se lhe diga, principalmente no que toca ao suposto diminutivo, que não segue a regra de formação dos diminutivos bascos.]
(Antes de avançarmos, note-se que «mochil» em espanhol é dito com um «tch» — será, desta forma, igual ao «motxil» basco. Por cá, andamos há séculos a perder o som «tch», que já só encontramos em certas serranias de Trás-os-Montes.)
Num salto mental difícil de explicar, este incidente fez-me pensar no seguinte: há quem tenha horror a palavras com origem noutros países de língua portuguesa. Há mesmo quem arreganhe os dentes a esse tipo de importação. E, no entanto, se levámos uma língua inteira para esses países, que mal haverá em recebermos umas quantas palavras de volta? Dir-me-ão alguns: se já temos por cá uma palavra, para quê outra? Ora, eu gosto muito de ter à disposição tanto «benjamim» como «caçula» e ainda «filho mais novo». Querem dizer a mesma coisa, mas têm sabores diferentes. Manias minhas, certamente. Mas como de uma palavra basca cheguei a estes pensamentos? Ora, o «rapazinho» basco fez-me imaginar: se agora se provasse que «mochila» era mesmo africana, quem não gosta de palavras africanas ou brasileiras deixaria de a usar? Chegaria a tanto o horror às palavras que vêm pelo mar?
Depois desta viagem até ao «rapazinho» basco, voltamos ao nosso «caçula» — a palavra já está bem integrada na nossa língua. Tem até ali no meio um c de cedilha — note-se que a palavra podia muito bem ser escrita «cassula», mas calhou ganhar uma cedilha que marca uma distinção fonética desaparecida muito antes de algum português ouvir falar da palavra «caçula». Ah, e podemos perfeitamente mexer na palavra com todo o arsenal que a língua nos dá: por exemplo, pondo-lhe um «-inha» no fim: «caçulinha».
E assim termino esta minha homenagem ao meu filho mais novo, o benjamim da família, o caçulinha cá de casa: o Matias, que faz hoje um ano.
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