MARCO NEVES
Este vídeo está a correr a internet e é bem divertido, ajudando alunos estrangeiros da nossa língua a aprender a ler português europeu de forma mais natural:
Mystery of the Disappearing Sounds (in European Portuguese!)
Have you ever been confused by the way Portuguese natives pronounce their sentences? Even if you know the individual words, when used together they can sound completely unfamiliar. This is often because some written vowels mysteriously vanish when spoken. Watch this short video now, because in the next few days we'll launch a new lesson to help you master vowel pronunciation. * Find out when we launch this lesson at https://www.practiceportuguese.com/blog/mystery/ *You'll learn *why* these vowel sounds disappear so you'll understand European Portuguese better while making your own accent sound more native at the same time.(A big thanks to Wayne Wilson for not only animating this video but also writing and narrating the English script! Please help us show him some love in the comments)
Publicada por Practice Portuguese en Miércoles, 5 de octubre de 2016
Claro que perante uma descrição divertida e bem-feita da língua, a reacção natural de alguns comentadores portugueses é dizer que os outros portugueses, se falam assim, falam mal!
Esses comentadores acusam as pessoas que falam da maneira descrita no vídeo de serem preguiçosas. Ora, a verdade é que a grande maioria dos portugueses fala assim e há muito tempo! A verdadeira preguiça está na mente dos comentadores, que nem conseguem parar uns minutos para observar como eles próprios pronunciam as palavras.
Mas percebo as reacções: as nossas ideias sobre como pronunciamos as palavras são muito influenciadas pela imagem gráfica dessas mesmas palavras no papel. Assim, há pessoas que não reparam que os portugueses raramente lêem o «s» de final de sílaba como «s» (mas sim como «ch» ou «j») e há quem não repare que há muitas vogais que desapareceram — e que, sim, todos nós dizemos, em conversa corrente, «qu’rido» e não «querido» (entre muitos outros exemplos). Todos elidimos estas vogais de forma natural, mas muito poucos reparam no que fazem com a língua — e há quem acabe a declarar que quem fala assim fala mal, sem perceber que faz a mesmíssima coisa (e faz muito bem!).
Não é só em português que a escrita acaba por nos enganar na hora de ouvir com atenção a maneira como dizemos as palavras: tal como li comentários ao vídeo em que alguém dizia que nunca diz «qu’rido», também muitos ingleses estão convencidos que no final da palavra «doing» pronunciam um «g». Pura ilusão: o «ng» é pronunciado de forma vagamente semelhante ao nosso «nh».
Sempre houve e sempre haverá mudanças fonéticas que vão afastando a língua da escrita (que aliás nunca é uma representação perfeita dos sons). Isto acontece em todas as línguas, numas mais, noutras menos. Esse mito de que a cada letra deve corresponder um som é uma forma muito simplista de olhar para a nossa língua. Olhem para França, por exemplo. Como bem lembrou Fernando Venâncio no debate sobre o assunto no Observatório da Asneira, os franceses lêem AOÛT como U (!) — e o próprio AOÛT também já é um corte radical do AUGUSTUS latino. Será que um francês que diz AOÛT como U está a falar mal? Não: está a falar francês. Mas na lógica dos comentadores indignados do vídeo, não, um francês tinha de ler aquelas letrinhas todas…
Muita gente anda por este mundo convencida de que a maneira como se fala e escreve a sua língua representa uma decadência terrível desde o tempo em que se falava bem — tempo esse que mais não é do que uma ilusão criada pela memória muito selectiva dumas quantas leituras e conversas de há muito tempo. Convençam-se duma vez por todas: o tempo em que se falava «o português perfeito» nunca existiu.
Por isso, um português que diz no dia-a-dia [pur issu] e [‘chtou a ch’gar] está a falar bem. Quem lê as letras uma a uma e de forma artificial está a inventar um português que não existe (ou, em bom português, [izícht]). Em Portugal, ninguém lê «existe» como [êzisstê] — só que muitos estão convencidos que sim.
A língua é complicada e a ortografia não é uma questão de correspondência simplista entre sons e letras… Em vez de indignações preguiçosas, vejam o vídeo e reparem, com um sorriso nos lábios, na forma peculiar como nós transformamos as nossas letras nos sons da nossa língua.
(Só uma última nota: nada do que disse acima equivale a dizer que, num contexto formal, podemos ler tudo de qualquer maneira! Não, não, não: há dicções mais claras do que outras e todos podemos melhorar nesse ponto. Mas falar bem português de Portugal nos seus vários registos implica conhecer os fenómenos explicados no vídeo! Quem os contraria de forma consciente está a tentar inventar uma língua inexistente. Confundir boa dicção com ideias erradas sobre a fonética da nossa língua é, deixem-me dizer-vos, sintoma de preguiça — ou de indignação linguística apontada ao alvo errado. )
*imagem original de Ling Languages via https://ling-app.com/
Publicação original
Marco Neves. Página de sobre línguas, livros e outras viagens.
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