MARCO NEVES

A Espanha é, para muitos portugueses (não direi a maioria, porque não sei quantos são), um território imenso que devemos passar por cima, de avião — ou então de carro, bem depressa, quase sem parar, até chegar a França e então respirar.

Uma Espanha escrita em português?

Para esses portugueses distraídos — os mesmos que descobriram «o problema catalão» há duas semanas e julgam que tudo começou no mês passado — há muitas surpresas escondidas para lá da fronteira.

Por exemplo: há um mistério escondido no mapa de Espanha. Aliás, nem será tanto no mapa, mas antes na lista completa de aldeias, vilas e cidades espanholas. Se abrirmos essa lista, vemos que mais de metade dos nomes não estão em espanhol, mas antes numa estranha língua muito parecida com o português. Alguns exemplos: «O Barco», «A Guarda», «Gondomar», «O Porto de Corme», «A Lagoa», «Cabana Moura», «O Reino», «Os Milagres do Medo»… Lembro que isto são nomes que aparecem exactamente assim nos mapas de Espanha…

Também aparecem muitos nomes que soam um pouco portugueses, mas têm o famoso «ñ» ou um excesso de «x» ou «-ción»: «A Toxa», «O Carballiño», «A Estación», «Os Baños» e a famosíssima «A Coruña»…

Mais de metade, dizia eu… E isto porque mais de metade das terras de Espanha estão na Galiza, que se divide em tantas aldeias, vilas e cidades que acaba por monopolizar a toponímia dos nossos vizinhos.

Todos dizemos palavrões galegos

Ora, a Galiza é qualquer coisa que nós sabemos que está ali, mesmo em cima de nós, mas a que ligamos pouco. É normal: nós somos distraídos no que toca à Espanha. Afinal, os tais portugueses de que falava há pouco sofrem de uma estranha cegueira gustativa que os leva a dizer coisas como «em Espanha come-se mal», o que deixa qualquer pessoa com duas papilas na boca a coçar a cabeça sem perceber onde foram buscar tal ideia. É o que dá provar a gastronomia do reino vizinho na perspectiva das estações de serviço a caminho da França… Basta ir à Galiza para desfazer essa ilusão…

Mas as surpresas vão muito para lá da gastronomia. Temos também um território e um clima muito semelhantes ao território e ao clima do Norte do nosso país — não é por acaso que os fogos da semana passada afligiram o Norte e a Galiza (embora o estrago tenha sido bem maior aqui a sul do Minho).

Depois, temos a língua… Nas últimas décadas, o uso do galego tem diminuído, mas ainda é a língua materna de milhões de galegos. Ora, os falantes de galego, separados dos portugueses por uma fronteira com 800 anos, ainda falam qualquer coisa de muito próximo da nossa própria língua — muitos afirmam mesmo que o português e o galego são dois nomes para a mesma língua e, nessa afirmação surpreendente, são secundados por muitos linguistas.

Na escrita, é fácil perceber essa proximidade. É verdade que os galegos têm uma relação um pouco difícil com a versão escrita da sua língua — afinal, existem duas ortografias. A ortografia oficial tem o «ñ» e o «ll» que associamos ao espanhol, enquanto uma minoria significativa de galegos usa a ortografia chamada «reintegracionista», muito mais próxima do português. Nós, portugueses, não temos de entrar nessas guerras. Basta-nos saber que o galego escrito, mesmo na ortografia oficial, está tão próximo do português que arrepia.

Já na fala, é mais complicado. Nós confundimos facilmente o galego com o espanhol — isto porque estamos pouco habituados a ouvir o sotaque galego, que usa uns quantos sons que associamos ao espanhol. Assim, os nossos ouvidos pouco treinados enfiam o que ouvem no saco do castelhano.

Se prestarmos atenção, no entanto, lá encontramos na boca dos galegos os nossos verbos, os nossos artigos — e os nossos palavrões.

Sim, peçam a um galego para dizer palavrões e vão ouvir palavras à antiga portuguesa! Não posso reproduzi-las agora porque o Sapo 24 é para toda a família.

A saudade também é galega?

Mais surpresas: os galegos também usam a palavra «saudade» — e também por lá têm pessoas que se entretêm a pensar se não será essa palavra especialmente importante para descrever a alma galega. Sim: esses mitos crescem em todo o lado.

E a História… Todos os povos esquecem-se de muita coisa. Nós, portugueses, esquecemo-nos da Galiza. Houve episódios de que raramente ouvimos falar, como o ano em que os galegos aclamaram El-Rei D. Fernando de Portugal como rei — e ele aceitou, entrando na Galiza numa invasão que foi muito bem-vinda. Partilhámos o rei durante dois anos, mas entretanto as guerras da época lá deram mais uma guinada e D. Fernando desistiu de ser rei a norte do Minho. Já bastavam as confusões a sul…

Perder o medo de falar português

Quando converso com galegos, muitos contam estranhas histórias em que falam em galego com portugueses e estes respondem em espanhol, julgando estar a fazer um favor ao turista. Na verdade, com os galegos, nós podemos mesmo falar português: eles percebem e agradecem.

Sim, existem milhões de cidadãos espanhóis que querem que falemos português com eles e que vivem em terras com nomes tão nossos como «Os Milagres do Medo» (na Província de Ourense).

Falemos com os galegos sem medo. Depois do choque inicial, é como chegar ao pé dum vizinho com quem nunca falámos e começar a conversar — na nossa língua, pois então.

(Se alguém quiser ler mais sobre a Galiza, pode começar por Outra idea de Galicia, de Miguel Anxo Murado, que está escrito em galego e pode ser lido sem dificuldades por qualquer português. Um livro mais do que recomendável.)

Publicação original

Página de Marco Neves sobre línguas, livros e outras viagens

http://www.certaspalavras.net/a-nossa-lingua-no-mapa-de-espanha

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