PAULO GAMALHO

Se, como bem sabemos, todo reintegracionista é um obsesso da língua, um reintegracionista com filhos multiplica por dez, como mínimo, essa obsessão. Permitide-me a pequena obscenidade de partilhar convosco a minha intimidade familiar. Vou escrever sobre a minha filha.

Desde que tenho crianças e observo perplexo o seu espantoso processo de aprendizagem linguístico, não podo deixar de analisar, categorizar e julgar as diferentes variedades de língua que as pessoas utilizam para falar com a minha filha mais velha, quem, sem contabilizar a vida intrauterina, completa já 38 meses de existência no planeta Terra. Tenho uma outra criança, ainda bebé, que semelha ter outras prioridades na vida. Está numa etapa da aprendizagem onde ainda não se interessa pola verbalização articulada das emoções. Amanha-se com 4 ou 5 tipos de pranto para atingir os seus básicos objetivos vitais.

Vou-me focar aqui unicamente na parte lexical da língua, mesmo se o estudo da morfossintaxe e da fonética daria para vários artigos intermináveis. A minha filha está a dar-se conta que vivemos numa sociedade trilíngue onde se falam três variedades: castelhano (metade da gente), galego castelhanizado (a outra metade) e galego descastelhanizado (na casa). Não digo nada inovador se afirmo que o léxico que utiliza uma criança ou que utilizamos com ela está cheio de palavras cujos referentes são entidades concretas ou conceitos de baixo nível de abstração. Em geral, uma criança fala muito de cadeiras, colheres, garfos, engaços, pás, pó, rãs, cores, amarelo, morangos, gelados, estrelas, estrada, baleias, golfinhos, tartarugas, macacos, crocodilos, esquios, adeus, etc. Todas estas palavras são utilizadas frequentemente na casa, mas infelizmente, é quase impossível buscar um reforço do seu uso no mundo exterior.

Além dos 0,25 por cento de reintegracionistas (lúdicos ou amargurados) que subsistem na nossa sociedade (a estimativa é minha), no mundo exterior só encontro humanos que falam castelhano ou galego castelhanizado. Este último nas suas diferentes subvariedades: paleo-galego (que apenas castelhaniza o léxico), neo-tourinhês, galego cañí, proto-castrapo, etc. Não duvido que existam isolacionistas militantes que utilizem o galego descastelhanizado com os seus filhos, mas ainda não dei com eles. De facto, as únicas criaturas que conhe- ço que utilizam “adeus” para despedir-se duma criança são reintegracionistas militantes (aqui o adjetivo “militantes” é redundante). Mesmo na escola infantil, o mais habitual é despedir-se dos nenos com palavras como “adiós”, “ciao”, “bye-by” ou “agur/abur”. E não se trata duma escola privada de imersão quatrilíngue. É uma escola pública que formava parte da rede de galescolas. Na Galiza, o paradoxo de Bertrand Russel fica ultrapassado pola nossa realidade sociolinguística: os reintegracionistas, que criticam a Norma, são os únicos que a utilizam na prática. Polo contrário, os isolacionistas, que apoiam a norma, não a utilizam, exceto, talvez, quando falam endogamicamente entre eles ou nalgum congresso sobre a Norma. Formulado matematicamente, o paradoxo ficaria assim: se A tem a propriedade ‘a’ então tem a propriedade ‘b’, e se B tem a propriedade ‘b’ então tem a propriedade ‘a’. Em vez de secretários gerais de política linguística, o que precisamos são matemáticos engenhosos com capacidade para resolver este tipo de hieróglifos.

Como ainda não podo levar a minha filha a congressos do ILGA, o único que podo fazer para reforçar o uso de palavras como “ensinar”, “estudar”, “acostumar” ou “olhar” é pôr-lhe um DVD do “Livro da Selva” ou de “Buscando a Nemo” em galego descastelhanizado com pronúncia de Lisboa. É a única opção que me resta para mostrar-lhe que a Norma de Compostela não só a utilizam papi e mami na casa, senão que é útil, divertida e amplamente estendida entre os animais da floresta tropical e dos oceanos insondáveis. Ao escutar ursos, panteras e peixes falar alegremente em galego, a cativa deixa de sentir-se uma extraterrestre filha de marcianos.

Publicação original:
https://pgl.gal/a-minha-filha-extraterrestre/, junho de 2009

Remédios para o galego. Coordenação: Diego Bernal e Valentim Fagim. Associaçom Galega da Língua. http://www.atraves-editora.com

Vota neste item: